quinta-feira, novembro 16, 2006

Oaxaca resiste

Num estado empobrecido do México, movimentos sociais enfrentam paramilitares e exército e propõem, como alternativa ao governador corrupto, um regime de assembléias populares

Anne Vigna

"Estamos diante da maior operação militar desde a operação contra o levante zapatista de 1994. Se trata de um desembarque por via aérea, terrestre e marítima." Esse comentário data do dia 3 de outubro, e é assinado pelo jornalista Hermann Bellinghausen no periódico mexicano La Jornada. Nesse dia, os comandos especiais da marinha desembarcavam em Huatulco e Salina Cruz, no estado de Oaxaca, apoiados pelo navio de guerra Usumacinta, 1500 marinheiros 20 helicópteros M-18 e M-17, aviões Hércules e C-12, além de vários tanques. Juntamente com as forças especiais do exército e da polícia federal preventiva (PFP), o dispositivo total contou com cerca de 20 mil homens. Helicópteros e aviões sobrevoam durante vários dias a capital do Estado, a "zona de combate", o centro histórico, as barricadas, os edifícios ocupados pelos "rebeldes". Embaixo, homens e mulheres gritam diversos insultos e os ameaçam de punho em riste.

Mais uma vez, é através do uso da força que o governo mexicano responde a um levante popular. E mais uma vez, a chegada massiva das forças armadas não calará uma população em revolta contra um governo considerado repressor, corrompido e eleito de forma fraudulenta em 2005: Ulises Ruiz, filiado ao Partido Revolucionário Institucional (PRI) que governou o México durante 71 anos.

O estado de Oaxaca e, em particular, sua capital – de mesmo nome - , vivem desde 22 de maio de 2006, um conflito social que se agravou após a repressão organizada, no dia 14 de junho, por Ruiz (saldo de 92 feridos) contra a seção do sindicato dos professores (SNTE), dissidente da direção nacional, que mobiliza cerca de 70 mil professores em greve. Desde então, a reivindicação principal desses "maestros" não mudará: "Volta às aulas, cinco dias depois da demissão do governador". Eles foram reunidos pela Assembléia Popular e Permanente de Oaxaca (APPO) – a quase totalidade das organizações sociais do estado. Um milhão e trezentos mil alunos estão sem aula há seis meses. Ocupação de prefeituras e edifícios públicos, de hotéis e do aeroporto, campanha de desobediência civil pacífica, radicalização...Apesar da união da população e um bloqueio completo das atividades do do estado, Ruiz se recusa a pedir afastamento do cargo.

Um pacto conservador ampara o governador corrupto

Desde o início, o governo federal de Vicente Fox, do Partido da Ação Nacional (PAN, de direita liberal), mostrou-se incapaz de resolver a questão. O desenrolar dos fatos ocorre paralelamente ao conflito pós-eleições que ainda estremece o México, logo após a suspeita eleição de Felipe Calderón (PAN) no dia 2 de julho, para a presidência da república [1]. Proposto no dia 5 de outubro pelo Secretário de governo, Carlos Abascal, o primeiro plano de negociação ("Pacto pela governabilidade, pela paz e pelo desenvolvimento do estado de Oaxaca") recomenda uma nova constituição para o Estado, uma reforma do sistema judiciário, uma série de estímulos econômicas e um compromisso de respeitar os direitos humanos. Nada se fez com relação à reinvidicação principal: a demissão do governador.

Os interesses que impedem que o Fox "ofereça a cabeça" do governador não têm a ver com o conflito local. Estão ligados à eleição presidencial manipulada. A decisão dos juízes do Tribunal Federal Eleitoral a favor de Felipe Calderón desencadeou um amplo movimento popular, inédito na história do México e dirigido por Andrés Manuel Lopez Obrador, o candidato "derrotado" do Partido Revolucionário Democrático (PRD, de esquerda). Segunda maior força política do país, o PRD não reconhece o novo executivo [2]. Ou seja, o único apoio real do qual Calderón dispõe para seu governo (que terá início em 1º de dezembro deste ano) é a aliança selada no congresso em setembro passado entre o PAN e o PRI, primeira e terceira força política, respectivamente. "Calderón precisa do PRI para governar e fazer passar as ’reformas estruturais’ que Fox nunca conseguiu aprovar. Mas ele também precisa do PRI para tomar posse perante o congresso no dia 1º de dezembro", explica o analista Luis Javier Garrido. Um dos objetivos da resistência civil organizada é justamente o de impedir essa posse.

A investidura de Calderón acontecerá somente com o apoio parlamentar do PRI, que acabou reconhecendo a "vitória" do PAN. Em troca, o PRI defende com unhas e dentes um de seus bastiões mais tradicionais: Oaxaca. Mas pode pagar muito caro, em escala nacional, pela defesa do governante contestado. "Em dois anos Ulisses Ruiz ordenou o assassinato de 35 dirigente sociais, e prendeu mais de 200, acusa Florentino Lopez, um dos porta-vozes da APPO. Ele desviou milhões de pesos destinados a obras sociais para as campanhas eleitorais do PRI e para suas próprias empresas". O governador que o antecedeu, José Murta (PRI) mandou prender 60 dirigentes. Atribuem-se a ele também quatro mortes e 15 feridos a bala. Sessenta por cento dos membros do seus gabinete fazem parte da equipe de Ulisses Ruiz. Sob suas ordens, grupos paramilitares e a polícia local atacam todos os dias as cerca das 1.500 barricadas erguidas na capital (3 mil em todo o estado), os 80 prédio públicos e 12 estações de rádio e televisão ocupados pela população.

Em busca de um pretexto para liquidar a insurreição

Desde junho, foram contabilizadas quatro mortes e o seqüestro de oito dirigentes, que reapareceram alguns dias depois na prisão. Todo o arsenal repressor foi montado há seis meses para dividir, aterrorizar e enfraquecer o movimento social. De acordo com o Raul Gatica, refugiado político no Canadá e porta-voz do Conselho Indígena Popular de Oaxaca – Ricardos Flores Magón (CIPO – RFM), "o governo procura destruir, em primeiro lugar, as barricadas, porque são espaços de orgnização e debate do movimento; o outro alvo são as rádios, por meio das quais nos comunicamos com a população".

Os atos de violência não desencadeiam nenhum tipo de investigação de amplitude federal. As duas grandes emissoras de televisão – a Televisa e a TV Azteca — "pintam" os militantes da APPO e da seção 22 do sindicato dos professores como fora-da-lei perigosos e armados. Ulisses Ruiz e o PRI querem o envio de forças policiais federais para "reestabelecer a ordem e punir os líderes". Em 3 de outubro, os militares "desembarcam" no estado... O presidente Fox declara que "a trangressão da lei deve sempre ser impedida e punida".

Diante de uma repressão que parece iminente, pois as negociações ainda não terminaram, Oaxaca se torna a Comuna de Oaxaca". No entanto, o fim da ofensiva parece próximo. Os militares não entram nas cidades. "Vicente Fox não pode terminar um mandato com essas graves violações dos direitos humanos, mas o objetivo era intimidar", estima o Onésimo Hidalgo, pesquisador do Centro de Investigações Econômicas e Políticas de Ação Comunitária (Ciepac) e autor de diversos livros sobre a militarização de Chiapas após a insurreição em 1994 [3].

No entanto, apenas 3000 fuzileiros da marinha retornaram, no dia 12 de outubro, às suas casas no norte do país. Os demais não deixarão tão cedo o local: a militarização do estado de Oaxaca se confirma, e os habitantes da zona rural coletam víveres para os grevistas. "A partir de agora, a estratégia é encontrar algum pretexto para que o exército se faça presente nas comunidades rurais, analisa Hidalgo. O pretexto pode ser um plano de urgência contra os furacões, a presença de grupos armados, ou a luta contra o narcotráfico e as migrações clandestinas. Eles nunca admitiram que se trata da militarização do território, mas é a mesma estratégia que a desenhada para controlar Chiapas".

Uma das regiões mais ricas (e empobrecidas...) do México

De fato, Oaxaca assemelha-se em vários aspectos com o seu vizinho Chiapas, militarizado desde a insurreição zapatista. Um território altamente estratégico e rico em recursos naturais, uma forte presença indígena e um nível de pobreza entre os mais elevados do país. Os 16 povos indígenas (1,6 milhões de pessoas) que constituem mais da metade da população do estado (3,4 milhões) sempre souberam bem o que é a discriminação. Professores das zonas rurais marginalizadas, os integrantes da seção 22 estão entre os mais mal-pagos do país. Há 26 anos, lutam por salários e pela melhoria de suas escolas. Aproximadamente 460 dos 570 municípios do estado não possuem serviços de base (água, saneamento, eletricidade) e as atividades principais que mais ocupam ainda são a agricultura e a exploração das riquezas naturais.

Oaxaca dispõe da região mais rica em biodiversidade do México: florestas, costas, lagos, montanhas, plantas raras, vários tipos de milho. No subsolo, encontra-se petróleo, urânio, carvão, ferro, ouro, prata, chumbo e mercúrio. De 1540 até o começo do século 20, as minas de Oaxaca responderam por metade da produção nacional de outro e prata. Mesmo assim, durante esse período, a extração desses metais não chevaga a ultrapassar 10% do seu potencial estimado [4]. Por fim, Oaxaca possui água em abundância para a hidroeletricidade e é um dos locais mais favoráveis em todo o mundo para a energia eólica, ao sul do istmo de Tehuantepec [5]. A exploração desses recursos está programada desde 2001, como parte do Plano Puebla Panamá [6]. Esse plano "de desenvolvimento" de inspiração neo-liberal, amplamente contestado pelos movimentos sociais, pretende criar infraestruturas (estradas, portos, barragens, etc) para a implatação de atividades econômicas. Ele acaba de ser relançado por Calderón presidente eleito (e contestado), durante uma visita feita em outubro à América Central.

A importância geoestratégica do estado de Oaxaca complica de maneira singular a resolução do conflito atual. As populações indígenas e as comunidades rurais representadas pela APPO querem gerir seus próprios recursos naturais, pois têm instrumentos legais para tal. O direito a uma organização política própria é uma reivindicação constante, tanto no campo quanto na cidade. "Trata-se do direito à autodeterminação dos povos, ou seja, à administração política dos nossos territórios e à gestão de nossos recursos naturais, explica Carlos Beas, um dos porta-vozes da União das Comunidades Indígenas da Norte do Istmo (Ucizoni), membro da APPO.

Muitas experiências de organização comunitária

Em Oaxaca, há muitas experiências em matéria de organização comunitária, social e política. O comércio equitativo espandiu-se fortemente na forma de cooperativas, que praticam uma forma de autonomia. As reivindicações são semelhantes às expressas en Chiapas dez anos atrás. Mas entram em conflito com a política que Calderón deseja implantar.

A militarização do estado de Oaxaca não é uma grande surpresa: ela confirma a posição agressiva do executivo frente aos movimentos socias que se multiplicam por todo o país. Recorrer às forças policiais é, com freqüência, a "resposta" do governo Fox, acompanhada de graves violações dos direitos humanos [7]. Se tomarmos como referência a experiência dos países latino-americanos e a história do México, caminhamos diretamente para um confronto crescente entre duas concepções políticas e econômicas distintas. "Trata-se de uma polarização entre os excluídos e uma classe privilegiada que concentra a riqueza e que influencia a vida política", avalia Neil Harvez, professor de ciências políticas da Universidade do Novo México. Cada vez mais, "Calderón irá satisfazer os meios econômicos que deram apoio à sua campanha".

Oaxaca antecipa a ingovernabilidade pela qual o México poderia passar durante a presidência contestada pela oposição a Calderón. A aliança deste com o PRI e o mundo dos negócios pode provocar novos conflitos. As forçar armadas conseguirão, então, apagar o fogo das variadas rebeliões?

Tradução: Márcia Macedo

[1] Ler Ignacio Ramonet, “Parar a esquerda”, Le Monde Diplomatique-Brasil, agosto de 2006.

[2] Uma "Convenção nacional democrática" que reuniu mais de um milhão de pessoas no Zócalo, praça central da Cidade do México, no dia 16 de setembro, aclamou Obrador "presidente legítimo do México". Este anunciou o início do governo paralelo.

[3] Ler Tras los pasos de una guerra inconclusa: 12 años de militarización en Chiapas, Enésimo Hidalgo, Ciepac, México, 2006.

[4] Ler Los minerales estratégicos de Oaxaca en el contexto del mercado mundial, Julio César Cabrera, Ciesas, México, 2006.

[5] Ler, “Les vents dorés de l’Isthme”, Systèmes solaires, Paris, julho agosto de 2005.

[6] Ler Braulio Moro, “Plano Puebla-Panamá: a nova colonização”, Le Monde Diplomatique-Brasil, dezembro de 2002.

[7] Em abril de 2006, na siderúrgica Lazaro Cardenas, ocupada por operários, dois deles foram mortos pela polícia. Em abril, em San Salvador Atenco, em um ataque contra um grupo de zapatistas, a repressão fez dois mortos, 47 mulheres estupradas e 211 presos, dos quais 29 ainda não estão em liberdade.

Le Monde diplomatique Brasil

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