terça-feira, novembro 07, 2006

A grande mídia encurralada

Lula Miranda
Nunca vi uma situação como a atual em que a chamada grande imprensa sofre tantas críticas e tão merecidas “bordoadas”.

Após ganhar todas as lutas, de modo inconteste, por nocaute, quase sempre no primeiro round, sob aplauso unânime de todos, utilizando-se, muitas vezes, de golpes baixos e gestos antiesportivos, a mídia está apanhando sem parar. Atordoada, com as pernas trêmulas, bambas, a face empalidecida, o olhar atônito, perdido, já completamente grogue, após inúmeros e certeiros golpes recebidos, a ex-toda poderosa grande mídia finalmente conheceu o córner e as cordas do ringue, e está na iminência de um espetacular nocaute. Como nas lutas de boxe, os espectadores (no caso, leitores) vibram entusiasmados, à espera do tombo do gigante antes imbatível.

Não sou simpatizante do boxe. Na verdade, acho-o um “esporte” violento, bárbaro, brutal, deplorável mesmo – isso sem falar, claro, no vale-tudo. Mas é inevitável, irresistível recorrer a essa singela metáfora para melhor definir a situação em que se encontra a grande imprensa hoje.

Confesso que, nesses quarenta e poucos anos de vida, pouco mais da metade deles dedicado à militância na literatura e na imprensa alternativas (portanto, na condição de antagonista às grandes editoras, jornais e revistas), nunca vi uma situação como a atual em que a chamada grande imprensa (a inatacável, inatingível, imbatível grande imprensa) sofre tantas críticas e tão merecidas “bordoadas”. E, ainda mais do que isso, a sua atuação é acompanhada de perto por leitores especialmente críticos e exigentes. Vivemos um momento ímpar, portanto, um marco na história recente da imprensa brasileira – sem dúvida ou exagero retórico algum. Seriam os primeiros passos no caminho para uma mídia mais democrática? É esperar (ou melhor, fazer) o porvir.

A principal característica da mídia, e também seu principal defeito ou cacoete, seu calcanhar de Aquiles, por assim dizer – assim como na nossa metáfora inicial, o mesmo se dá com o lutador de boxe –, é que ela, mídia, sempre esteve acostumada tão somente a bater. Bater e bater. Bater mais. Indiferente ao adversário ou contendor e às suas qualidades ou possíveis méritos (“impávido que nem Muhammad Ali”). Acostumou-se a distribuir porradas a torto e a direito, impunemente. Pegou traquejo e gosto pelo linchamento (moral). Mas também pela calúnia, pela intriga, pela manipulação e, in extremis, pela destruição de vidas e reputações. Muitas vezes, não se furtando a fazer uma espécie de publicidade da infâmia (um marketing ao contrário, infamante). Entregou-se, ainda, à incúria, ao descuido, à preguiça; à competição desenfreada pelo furo de reportagem, pela manchete a qualquer preço.

Em nome de uma suposta (e sagrada) liberdade de expressão, a mídia tudo podia. Por que esse princípio sacramentado [o da liberdade de expressão] não serve também para proteger Emir Sader do mandonismo dos “donos do poder” (como dizia Faoro)? Eles tudo podiam em nome da tal liberdade de expressão, ou de imprensa - como, às vezes, preferem. A seu bel-prazer, a mídia caluniava, mentia, distorcia, manipulava - note que me utilizo aqui do tempo pretérito, como que a marcar o passado e sinalizar o porvir, o daqui para frente. Também a seu bel-prazer, elegia governadores, prefeitos, deputados, presidentes (quem não se lembra do “fenômeno” Collor?) etc - elegia até um poste, dizia-se. Também a seu bel-prazer cassava os mandatos de governadores, prefeitos, deputados, presidentes (Collor, também nesse caso, nos serve como exemplo) etc. Construía e destruía famas, reputações. A mídia tocava a sua flauta e nós, os ratinhos enfeitiçados, a seguíamos diligentes, comportados - muitas vezes, rumo a nossa própria desgraça. Impunha-nos suas verdades. Não mais. A grande mídia, e é essa a grande novidade, já não mais detém o monopólio da opinião pública. Já não nos guia em direção ao precipício, como se cegos fôssemos.

Aqui é necessário que se faça um oportuno parêntesis. Não se pretende, de modo algum, negar a importante função social da imprensa. Seja na indispensável vigilância crítica de cidadãos, autoridades constituídas, governos e partidos políticos, seja no seu fundamental papel (constitucional?) na defesa das instituições e na luta pela consolidação (ainda em processo) da nossa incipiente democracia. Portanto, não queiram nos acusar, os atuais defensores dessa mídia prostituída que aí está (com o perdão das profissionais do sexo), de sermos “intransigentes”, “nazistas”, “stalinistas”, “petistas” (no início do século passado, nos chamariam de “comunistas”) e outros “istas” absolutamente vazios de conteúdo, destituídos de sentido. Cansamos, sim, do parcialismo desmedido, do facciosimo canalha, da hipocrisia, da falta de ética, da manipulação, dos escândalos pré-fabricados. Mazelas essas decorrentes, naturalmente, da falta de controle, dos plenos poderes, dos monopólios e oligopólios, do “coronelismo midiático”, que deixaram a nossa mídia livre para transgredir os limites da ética e do bom jornalismo. Não se trata, portanto (em absoluto!), de desejar calar a mídia ou manietá-la.

Nunca se viram tantos artigos publicados sobre o papel da mídia como nos dias de hoje. E, mais precisamente, sobre sua (im)postura no processo eleitoral recentemente encerrado. Nunca se viram também tantos comentários de leitores (muito bem elaborados e articulados, por sinal) em blogs e sites na internet – essa via libertária e redentora que propicia o diálogo e a participação on line (em tempo real) dos cidadãos nos fóruns de debates (não à toa, vozes mais conservadoras no Senado já falam em “controlar a internet”). Na grande imprensa, quase nunca a opinião do leitor é publicada ou levada em consideração – as cartas nem sempre são publicadas. Nos sites e blogs da chamada imprensa digital essa relação é mais direta e profícua. E isso faz toda a diferença. A grande imprensa, se não se renovar, a si e aos seus quadros (jornalistas e, claro, editores), prosseguirá perdendo credibilidade, prestígio e, por fim, leitores. E, não se engane, além dos jornais e revistas, até mesmo os blogs e sites (ou sítios) mantidos por veículos das grandes corporações da comunicação (Grupo Folha da Manhã, Grupo Estado, Organizações Globo etc.) estão tornando-se sítios desertos – de idéias e de leitores. E, sabemos, sem a chamada “audiência” as verbas publicitárias começam a minguar, a receita a escassear e os impérios da mídia começarão, sem dúvida, muito em breve, a ruir, a cair. Como o lutador da nossa metáfora inicial. Outrora arrogante, imprudente, senhor de si, impávido em sua arena.

Observe, por exemplo, aqui mesmo na Agência Carta Maior, os inúmeros comentários de leitores (já eram 169, por mim “auditados”, na noite dessa segunda-feira, 06/11) na matéria de Bia Barbosa: “População critica cobertura; Globo faz abaixo assinado pra se defender” (leia aqui). Ou os mais de 530 comentários na matéria de Marcel Gomes sobre a condenação de Emir Sader (leia aqui). No site do Observatório da Imprensa, onde o provecto jornalista Alberto Dines está fazendo – estranhamente, pois trata-se de um grande jornalista – um “papelão” na defesa intransigente, autoritária, injustificável e meramente retórica (nem um pouco dialética) da imprensa. Sim, aquele que era para fazer o papel de observador crítico da mídia parece ter incorporado o papel, nada nobre, de um rábula rabugento/intolerante, ou até mesmo de um mero guardião do mais mesquinho corporativismo. Será? Difícil entender. Ele, em sua retórica barroca (exagerada, destemperada) chega ao paroxismo de falar em “empastelamento” da imprensa. Dines tem recebido de 300 a 500 comentários em seus artigos e “posts” no site do Observatório. A retumbante maioria deles, na verdade quase a unanimidade, feitos de modo competente, ponderado, em sua maioria por jornalistas, professores e profissionais liberais, contrários às suas posições e com críticas contundentes/competentes à atuação da grande imprensa. Mas Dines, que tem tido a desfaçatez de, “democraticamente”, levar ao seu programa, o OI na TV, quase sempre, somente os que pensam como ele (como no programa de 31/10), numa completa ausência do contraditório, não é atualmente o único guardião da mídia farsante.

Envolvidos no caso do chamado “dossiê da mídia” [ver CartaCapital edições 415 e 416], que ajudou, digamos assim, a levar a eleição para o segundo turno, Ali Kamel rede Globo de Televisão) e Eurípedes Alcântara (revista Veja), e alguns outros sabujos dos donos do poder, já colocaram as barbas de molho e a cabeça para fora de seu casulo de empáfia e arrogância, e deram a cara pra bater em blogs, sites e até mesmo, como no caso de Kamel, através de uma matéria paga na revista CartaCapital. Porém, ainda não se tem registro de manifestação alguma do “Mister OFF” (referência a Otávio Frias Filho), que ainda não saiu das sombras para se justificar perante a sociedade pelos pecados cometidos pela Folha de S. Paulo na cobertura do incrível caso do delegado Bruno, suas armações ilimitadas e estratagemas para revelar à imprensa as fotos do dinheiro que seria utilizado na compra do famigerado dossiê Serra/Vedoin. Esse cronista, conforme já disse em textos anteriores, não descansará enquanto não houver uma punição exemplar aos jornalistas da Folha, da TV Globo e da Veja envolvidos no episódio, e enquanto não ocorrer, da parte desses veículos, um enfático pedido de desculpas à sociedade pelas mentiras e orquestrações engendradas. Esse cronista, inclusive, busca, no momento, assessoria jurídica para buscar a melhor forma (se via Ministério Público ou outros caminhos) de entrar com uma queixa-crime contra os veículos e jornalistas envolvidos. Mas, a despeito disso tudo, e na contra-mão dos fatos e dessa corrente renovadora e airosa trazida à pauta por essas novas mídias e por esses leitores mais atentos, críticos e qualificados, em recente editorial da própria Folha (sempre ela) intitulado “Volta a truculência”, os leitores mais atentos, críticos e qualificados puderam perceber a indelével marca da arrogância pequeno-burguesa de “Mister OFF” quando chama de “boçalidade” a louvável postura crítica em relação à imprensa do governador recém-reeleito pelo estado do Paraná, Roberto Requião. Também ele vítima, durante a sua gestão assim como na campanha, do facciosismo deletério, das mentiras e manipulações da mídia.

Assim, ainda como o lutador de boxe na nossa metáfora inicial, a arrogância e desbragado narcisismo (vaidade, cinismo, desfaçatez etc.) dos “coronéis” da nossa imprensa, bem como de seus capatazes ou sabujos, selarão sua desgraça. Os oligarcas cordatos da nossa grande imprensa, que majestáticos ainda viram as costas à verdade factual e ao leitor, precisam reformular seus modos e estratégia, senão beijarão a lona dura e fria. Cairão enfim em desgraça. Ela, mass media, que sempre bateu com sádico prazer, sem dó nem piedade, agora apanha feio. Nada mais pedagógico – e emblemático. Sinais dos tempos, vindouros. Alvissareiros. Assim espero. Melhor, esperamos todos.


N.A. Recomendo a leitura do artigo do sociólogo e diretor da Vox Populi, Marcos Coimbra (quase impecável), na CartaCapital edição de nº 418. Para os que não tiverem acesso, aqui vai um pequeno trecho:

“(...) Ganhou o voto de quem se sentiu satisfeito com o que está vivendo e convencido de que os pecados de Lula e do PT só serão resolvidos quando todo o sistema político mudar. Ganhou, portanto, um voto concreto e informado, o inverso do que imaginam alguns analistas, que mais tendem a repetir estereótipos que a criticá-los”.

“Tenho acompanhado a eleição desde muito cedo e com diversos instrumentos de pesquisa, é, para mim, muito claro que foram os eleitores de “classe média”, de maior escolaridade e renda, muitos vivendo em cidades grandes e modernas, os que mais tenderam a ser ‘manipulados’. Foram eles os que mais se revelaram propensos a votar segundo a informação recebida, de maneira acrítica e, muitas vezes, superficial. Ou seja, cada vez que alguém se inflamava contra a ignorância dos pobres, dirigia mal suas baterias”
.

Seria o caso de se perguntar: é preciso dizer mais alguma coisa?

Fonte : Agência Carta Maior

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