quarta-feira, novembro 29, 2006

Cuba - Corpo Fechado

O cotidiano de Havana, as crianças nas praças, os guardas nos quarteirões, as noites de salsa, os orixás dão a sensação de que não será fácil demolir a experiência socialista tropical

Na segunda semana de agosto, Cuba era notícia em todo o mundo. Fidel Castro se afastava do governo pela primeira vez, pouco antes de completar seus 80 anos, no dia 13, para uma cirurgia grave. A mídia de todo o mundo se alvoroçava, parecia “torcer” por um levante, quem sabe o fim de 47 anos de revolução. Redações acionavam seus correspondentes: “Fotografem os tanques nas ruas!” Os jornalistas esquadrinhavam Havana. Mas não havia tanque nas ruas.

Noticiada a doença, as portas da ilha foram fechadas para jornalistas estrangeiros. Mesmo sabendo, a Folha de S.Paulo tentou entrar – talvez pelo propósito de publicar, como fez, enorme matéria “denunciando” o impedimento. Em Havana há cerca de uma centena de correspondentes internacionais. Ne-nhum do Brasil, onde as notícias sobre Cuba vêm das agências internacionais, ou dos correspondentes em Washington....

Na semana em questão, a vida seguia. O cotidiano cubano é diferente. As crianças, em férias, brincavam nos parques e centros esportivos. Criança de rua não existe. Pais e mães sabem que a formação gratuita de seus filhos até a universidade, e a pós-graduação, e o doutorado, ali não é sonho. Os salários são baixíssimos, mesmo para engenheiros, médicos etc. Mas, como disse uma correspondente internacional, cujo salário vertido na moeda local se transforma em poucos pesos cubanos: “Recentemente passei por uma cirurgia muito grande, e não paguei nada”. Pois os cubanos também não temem a falta de atendimento médico. Não sabem o que é sucumbir em corredores de hospitais, dar à luz em pias, esperar em macas por uma UTI. Nem o que é um plano de saúde que limitará exames, intervenções e deixará o grosso dos procedimentos para o SUS.

A medicina cubana, uma das melhores do mundo, é também solidária: 25 mil médicos cubanos atendem em países do Terceiro Mundo. Pena que no Brasil a corporação médica não reconheça seu diploma. Que inédito poder andar a qualquer hora do dia ou da noite em uma metrópole, sem medo. Em cada esquina da Havana Vieja, ouvir os calientes ritmos caribenhos. Se precisar de uma informação, pergunte ao guarda, presente em cada quarteirão.

Uma cubana que esteve em São Paulo levou tempo para se acostumar, à noite, aos infindáveis luminosos que chamam, anunciam, vendem. Na paisagem de Havana, onde o espaço público é público mesmo, os olhos descansam Problemas existem. Muitos. Há quem queira ou precise mais do que a ilha oferece. Por exemplo, os profissionais de nível universitário. Um engenheiro mecânico nos transportou em seu táxi clandestino. Guillermo abandonou a profissão porque ganhava muito pouco, e se arrisca nessa, que vive do turismo.

O país é o que há mais tempo resiste às agressões norte-americanas e a um bloqueio econômico de meio século. “Depois de tudo o que passamos, não há nada mais que possa nos assustar”, disse uma funcionária da Cubatur, a empresa oficial de turismo.

Não será fácil demolir a experiên-cia socialista tropical. A luta do povo contra invasores não começou com a revolução de 1959, tem mais de 100 anos, como atestam as 138 bandeiras negras tremulando no alto dos mastros da Tribuna Antiimperialista José Martí, local de manifestações políticas e festivas de Havana – erguidas para esconder as mensagens contra o regime veiculadas diuturnamente no luminoso do edifício em que funciona o escritório de interesses dos EUA, no Malecón.

Na Tribuna, na noite de 12 para 13 de agosto, houve uma Cantata pela Pátria, em homenagem ao aniversário de Fidel, vista por centenas de milhares de, especialmente, jovens. Nesse dia, ele disse em entrevista ao jornal Granma que não enganaria o povo sobre sua saúde, que seria uma recuperação lenta.

No dia 18 de setembro, o deputado argentino Miguel Bonasso teve uma inesperada entrevista com Fidel, publicada no jornal Página 12, de Buenos Aires. Bem mais magro, mas falando muito, como sempre, dedicando-se a anotações do livro-entrevista que o jornalista espanhol Ignácio Ramonet acaba de lançar, dá a impressão de que está vencendo mais uma batalha.

Ele já escapou de atentados incríveis, até mesmo com uma caneta envenenada. O povo, de religião afro-cubana na maioria, crê que ele tenha o corpo fechado pelos babalaos, mesmo nome dos babalaôs do candomblé baiano, só a pronúncia é diferente. São os mesmos orixás, é a mesma cultura iorubá que faz esses dois povos tão parecidos, principalmente na alegria e na vocação para a música. Como não torcer por eles?

Agência Carta Maior

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