Ivy Judensnaider, da Arscientia
Assunto de interesse de todos os cidadãos e, em particular, dos intelectuais e profissionais da mídia.
Processado por injúria pelo senador Jorge Bornhausen em função de um artigo publicado na Carta Maior (cuja íntegra pode ser vista aqui), o sociólogo Emir Sader foi condenado a um ano de detenção e à perda do cargo de professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. As reações à condenação incluem um manifesto, onde mais de dez mil intelectuais apóiam Emir Sader e repudiam a condenação.
Ainda, o promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Renato Eugênio de Freitas Peres, entrou com recurso junto ao juiz de Direito da 22ª Vara Criminal de São Paulo, Rodrigo Cesar Muller Valente. No recurso, o promotor pede que seja declarada a nulidade do processo, por rejeição da Queixa-crime (por inépcia e falta de condições processuais, leia-se, adequação do pedido), ou que ainda que seja declarada a nulidade do feito por descumprimento do rito especial da lei de imprensa e por falta de oitiva das testemunhas de defesa. O promotor complementa: caso “chegue o julgamento ao mérito, o pedido da Promotoria de justiça é no sentido de que seja reformada a sentença com improcedência da ação penal, seja por falta de prova de dolo, seja pela possibilidade de considerar-se o fato atípico. Por fim, se mantida a condenação, deve ser reformada no mínimo para que seja retirado o efeito secundário de perda de cargo e para concessão de “sursis”. A Carta Maior publicou a íntegra o recurso.
Em entrevista à editora-chefe da arScientia, Ivy Judensnaider, o promotor Renato Eugênio de Freitas Peres esclareceu alguns aspectos do caso.
arScientia: O senhor afirmou que a denúncia sequer deveria ter sido aceita, já que não ficou claro se o crime do qual foi acusado o Prof. Emir Sader era de calúnia, injúria ou difamação.
Renato Peres: Antes, gostaria de esclarecer que não sou "petista", não exerço atividade político-partidária nenhuma, não sou militante de qualquer movimento político. Em Direito Penal existe um fenômeno chamado "subsunção", que significa que um fato social deve encaixar-se num modelo hipotético previsto em lei. Somente quando ocorre isto podemos dizer que houve um crime porque é uma garantia das democracias que os crimes sejam fixados previamente por lei. Para que um crime seja punido, contudo, precisa haver um processo legal, que também deve obedecer regras, como um jogo. E para haver um processo, é preciso que uma petição ou uma acusação penal seja adequadamente apresentada em Juízo. A acusação penal é sujeita a maior rigor que uma petição cível. Um fato tem que se encaixar perfeitamente no modelo hipotético, não pode haver uma dissertação genérica associadas a vários tipos penais. E a petição deve descrevê-lo perfeitamente para permitir a defesa e o julgamento. É muito comum ver chegar à Justiça queixas-crimes genéricas (petições de ações de iniciativa privada) por crime contra a honra. E os precedentes em geral são de rejeição. A acusação deve ser bem objetiva e a redação deve ser sucinta e direta.
arScientia: Qual a diferença entre esses crimes, do ponto de vista do conceito e das penas que geram?
Renato Peres: Caluniar é imputar a alguém falsamente a autoria de um crime. Difamar é imputar um fato ofensivo à reputação (não um crime). Injuriar é simplesmente ofender o decoro ou a dignidade. No Código Penal tais tipos têm penas mínimas de seis meses, três meses e um mês (ou multa) respectivamente. Percebe-se que conforme o fato é mais genérico e menos grave, a lei torna a pena mais leve. Mas existem variantes de tais tipos, como a injúria racial e os tipos assemelhados da Lei de Imprensa.
arScientia: Quais são as variantes em termos da lei de imprensa?
Renato Peres: A lei de imprensa prevê penas diversas para os fatos praticados por meio de órgãos de comunicação. As penas mínimas são parecidas, mas as penas máximas são maiores, e há fixação dos valores das multas. Por exemplo, a pena máxima de injúria na imprensa é de um ano, mas a pena máxima de injúria do Código Penal é de apenas seis meses. Além disto, a multa mínima do Código Penal é de dez dias de salário mínimo, e a multa da lei de imprensa é de um salário mínimo.
arScientia: A Lei da Imprensa foi utilizada como instrumento para a condenação. Houve algum erro na forma como ocorreu essa utilização?
Renato Peres: É a lei de imprensa boa? Pelo que eu sei, essa lei era objeto de muitas reclamações dos jornalistas porque foi editada em 1967. Talvez não por conter penas máximas maiores porque a nossa tradição é de aplicar sempre as mínimas. Mas não é possível deixar de observar que ela contem muitos dispositivos mais modernos que os do Código Penal, como as alternativas de conciliação, direito de resposta, alternativa de multa, formas de perdão. No caso da injúria, por exemplo, há previsão de não aplicação da pena quando o ofendido provocou o fato. Existe a notificação para explicação da ofensa, que permite a retratação ou retificação por parte do suposto ofensor e acaba com a ação penal. Existe também o direito de resposta, que permite uma publicação reparatória da ofensa. No caso em tela, somente poderia ter sido utilizada a lei de imprensa porque o fato em julgamento ocorreu por meio de uma publicação. Todavia, a lei de imprensa prevê alguns procedimentos que não foram aplicados ou cuja aplicação não se deu corretamente, como a chamada exceção da verdade ou a notificação para explicação. Se a notificação tivesse sido exercitada, não teríamos a ação polêmica. Não foi exigida a notificação prévia. No meu modo de ver, a acusação genérica causa um problema para a defesa e para o julgamento. Eu já havia apontado para isto. O julgador negou reconhecer a existência do problema, mas depois acabou tendo que limitar o julgamento a apenas uma expressão, das muitas que seriam "ofensivas". E limitou a capitulação a um tipo penal, injúria, que é o mais genérico, ou aberto. "Encaixou" o emprego do termo "racista" na hipótese de injúria... (racismo é crime, logo o mais certo seria tipificar o fato como calúnia). É possível ver uma lógica ao fazer isto, mas caberia a ele explicar. De qualquer modo, não compreendo como tanta gente discursa em público no sentido de que é necessário separar criminosos violentos dos não violentos, ou no sentido de que é necessário criar procedimentos diferenciados para crimes não violentos, quando os mecanismos existentes não são aplicados. A legislação penal brasileira é bastante benevolente, a aplicação do direito penal é muito mitigada, há muitas alternativas "despenalizadoras" mesmo numa lei da época da ditadura. O caso revela, contudo, que quando há vontade, o direito pode ser muito rigoroso.
arScientia: Esse excesso de rigor ocorreu no caso do professor Emir Sader?
Renato Peres: Como se não bastassem as alternativas da lei de imprensa, nós temos hoje em vigor a lei de pequenas causas. Ninguém recebe pena de cadeia se for primário. Aliás, os processos não chegam a julgamento quando a pena de um crime é de detenção. É verdade que, no caso, a ação é de iniciativa privada, mas parece inconcebível que não se aplique a lei de pequenas causas porque os requisitos estão todos presentes.
arScientia: Na sua opinião, quais os exageros da sentença do juiz que julgou o caso?
Renato Peres: Quanto a ter havido um erro, é preciso dizer que não ouso falar mal do juiz. Primeiro, não foi ele que presidiu o processo desde o começo. Um antecessor aceitou a Queixa. Depois ele foi coerente, qualidade que deve ser respeitada. É rigoroso em todos os casos. A relação entre promotor e juiz é impessoal e deve ser objetiva, opiniões são divergentes e vamos colocar no papel, cada um na sua função. Provavelmente ele é coerente também com o que a sociedade paulista espera dele. Mas o primeiro exagero está na própria existência do processo. A Justiça tem bastante trabalho com crimes violentos para perder tempo com algo que é um crime de bagatela, se é que pode ser considerado crime. Não ter havido alternativa de prestação anterior ao processo é um exagero. Um valor alto poderia ter sido exigido, sem o custo de um processo. Depois, se limitada a condenação à injúria, a pena cabível seria a de multa. Os juízes sempre aplicam a menor pena. É raríssimo encontrar aplicação acima do mínimo. Quando há previsão de detenção ou multa, a regra é a multa, a pena menor. Além de ser afastada a multa, foi fixada a pena no máximo, um ano de detenção. Com isto, um outro "exagero" ocorreu: a decretação de perda de cargo. Ora, esse efeito secundário somente tem cabimento em penas de quatro anos ou mais. Ou se o crime tiver penas de um ano, quando o fato criminoso está relacionado ao cargo. No caso o suposto crime teria ocorrido no exercício de atividade jornalística, na imprensa, não no exercício de docência... Há tantos exageros que a pena de detenção com perda de cargo acabou sendo substituída por prestação de serviços. Ora, a perda do cargo é efeito secundário, acessório. O cumprimento da prestação de serviços elimina a pena substituída e o seu efeito secundário, entendo eu. Há tantas falhas, do meu ponto de vista, que parece impossível executar uma condenação assim. Um ponto à parte diz respeito à perda de cargo de professor. O fato não tem nada a ver com o suposto crime de imprensa. Além disto, parece um atentado contra a vida autônoma e a organização universitária. Será que a demissão de um professor universitário pode vir de fora da instituição?
arScientia: Como o senhor avalia o comportamento da imprensa no caso do Prof. Emir Sader?
Renato Peres: Interessante o comportamento da imprensa em São Paulo. Temos um Estado e uma Capital que não apenas são governados pela aliança formada pelo partido do querelante, como de fato o partido do querelante tem os mandatários que estão em exercício. Será que esse partido exerce tanta influência assim? Até mesmo O Globo da família Marinho publicou a notícia, mas não os grandes jornais de São Paulo. Também ouvi umas besteiras do tipo "o Ministério Público é um braço do PT" por causa do recurso... Isto é brincadeira? Existe algo do PT no Ministério Público ou na Justiça em São Paulo? Há uma mensagem nessa situação: é algo como "esse réu tem o que merece, os petistas são todos bandidos e não há lugar para gente assim aqui em São Paulo". Talvez a sentença seja o que as classes que mandam em São Paulo esperam. Assim, um fato desses não pode ser contestado ou sequer debatido. A imprensa devia se envergonhar do problema, mas prefere fingir que ele nem existe. Mas eu vou além disto. Tenho a impressão de que o fato é tão vergonhoso que está sendo escondido, varrido para baixo do tapete, para que ninguém veja que coisa grotesca pode ocorrer no Estado mais moderno, rico, ilustrado... Fico imaginando se o caso será relatado por organizações internacionais como atentado contra a imprensa, e se aí os jornais publicarão a notícia porque a Anistia Internacional pediu. Um jornalista condenado a um ano de prisão e perda de cargo de professor... É claro que as comparações devem ser evitadas, mas quando penso no caso, eu me lembro do caso Dreyfus.
arScientia: Por que a lembrança do Caso Dreyfus?
Renato Peres: Pelo absurdo, pelo julgamento estar imbuído de uma certa discriminação. Claro, mais de um século se passou. Aliás, está completando cem anos a reabilitação. Guardadas as devidas proporções, será que estamos produzindo um caso Dreyfus à brasileira, ou à paulista? Só falta mandar o réu para uma "Ilha Grande". Aqui no caso não se trata de discriminação racial. Mas as discriminações no Brasil geralmente são sociais. E decorrem até da aparência. O diferente aqui no caso é ser petista, e ele deve ser condenado a uma espécie de ostracismo. Não há lugar para quem discorde da classe majoritária. Não pode haver alternativa política. É bandidismo ser petista e a pena deve ser severa. Por enquanto, tenho a impressão que o caso é tão grotesco que a condenação não prevalecerá. Mas sabe-se lá... Todavia, enquanto há a condenação, a Promotoria deve lutar contra ela. A Justiça, entendida como esse universo formado por Judiciário, Ministério Público, Advocacia, aparato policial, deveria envergonhar-se de um caso assim. Se há um caso Dreyfus, que fique bem claro que o Ministério Público levantou a voz para apontar o erro, já que o Promotor não é apenas acusador. A função do Promotor de Justiça é defender a ordem democrática, a sociedade. O mínimo de igualdade de tratamento, de processo legal. Quando há crime, temos uma causa envolvendo a segurança pública. No caso em tela, é óbvio que a segurança pública não foi envolvida. Não temos um crime nem um criminoso, entendo eu. Temos uma questão em que é possível discutir idealmente a justiça. E aí deve agir o Ministério Público fiscal da lei. E deve lutar mesmo com os poucos recursos ao seu alcance.
Ivy Judensnaider - É economista e mestra em História da Ciência e Tecnologia pela PUC/SP. Trabalha como professora universitária e é escritora. Autora de Debora Fala Reservadamente com Todos, publicado pela Editora Altana, SP, é colunista da revista eletrônica NovaE, editora-chefe de arScientia e também publica regularmente em Blog da Ivy . ivy.naider@gmail.com - São Paulo
Fonte: Novae.inf
Assunto de interesse de todos os cidadãos e, em particular, dos intelectuais e profissionais da mídia.
Processado por injúria pelo senador Jorge Bornhausen em função de um artigo publicado na Carta Maior (cuja íntegra pode ser vista aqui), o sociólogo Emir Sader foi condenado a um ano de detenção e à perda do cargo de professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. As reações à condenação incluem um manifesto, onde mais de dez mil intelectuais apóiam Emir Sader e repudiam a condenação.
Ainda, o promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Renato Eugênio de Freitas Peres, entrou com recurso junto ao juiz de Direito da 22ª Vara Criminal de São Paulo, Rodrigo Cesar Muller Valente. No recurso, o promotor pede que seja declarada a nulidade do processo, por rejeição da Queixa-crime (por inépcia e falta de condições processuais, leia-se, adequação do pedido), ou que ainda que seja declarada a nulidade do feito por descumprimento do rito especial da lei de imprensa e por falta de oitiva das testemunhas de defesa. O promotor complementa: caso “chegue o julgamento ao mérito, o pedido da Promotoria de justiça é no sentido de que seja reformada a sentença com improcedência da ação penal, seja por falta de prova de dolo, seja pela possibilidade de considerar-se o fato atípico. Por fim, se mantida a condenação, deve ser reformada no mínimo para que seja retirado o efeito secundário de perda de cargo e para concessão de “sursis”. A Carta Maior publicou a íntegra o recurso.
Em entrevista à editora-chefe da arScientia, Ivy Judensnaider, o promotor Renato Eugênio de Freitas Peres esclareceu alguns aspectos do caso.
arScientia: O senhor afirmou que a denúncia sequer deveria ter sido aceita, já que não ficou claro se o crime do qual foi acusado o Prof. Emir Sader era de calúnia, injúria ou difamação.
Renato Peres: Antes, gostaria de esclarecer que não sou "petista", não exerço atividade político-partidária nenhuma, não sou militante de qualquer movimento político. Em Direito Penal existe um fenômeno chamado "subsunção", que significa que um fato social deve encaixar-se num modelo hipotético previsto em lei. Somente quando ocorre isto podemos dizer que houve um crime porque é uma garantia das democracias que os crimes sejam fixados previamente por lei. Para que um crime seja punido, contudo, precisa haver um processo legal, que também deve obedecer regras, como um jogo. E para haver um processo, é preciso que uma petição ou uma acusação penal seja adequadamente apresentada em Juízo. A acusação penal é sujeita a maior rigor que uma petição cível. Um fato tem que se encaixar perfeitamente no modelo hipotético, não pode haver uma dissertação genérica associadas a vários tipos penais. E a petição deve descrevê-lo perfeitamente para permitir a defesa e o julgamento. É muito comum ver chegar à Justiça queixas-crimes genéricas (petições de ações de iniciativa privada) por crime contra a honra. E os precedentes em geral são de rejeição. A acusação deve ser bem objetiva e a redação deve ser sucinta e direta.
arScientia: Qual a diferença entre esses crimes, do ponto de vista do conceito e das penas que geram?
Renato Peres: Caluniar é imputar a alguém falsamente a autoria de um crime. Difamar é imputar um fato ofensivo à reputação (não um crime). Injuriar é simplesmente ofender o decoro ou a dignidade. No Código Penal tais tipos têm penas mínimas de seis meses, três meses e um mês (ou multa) respectivamente. Percebe-se que conforme o fato é mais genérico e menos grave, a lei torna a pena mais leve. Mas existem variantes de tais tipos, como a injúria racial e os tipos assemelhados da Lei de Imprensa.
arScientia: Quais são as variantes em termos da lei de imprensa?
Renato Peres: A lei de imprensa prevê penas diversas para os fatos praticados por meio de órgãos de comunicação. As penas mínimas são parecidas, mas as penas máximas são maiores, e há fixação dos valores das multas. Por exemplo, a pena máxima de injúria na imprensa é de um ano, mas a pena máxima de injúria do Código Penal é de apenas seis meses. Além disto, a multa mínima do Código Penal é de dez dias de salário mínimo, e a multa da lei de imprensa é de um salário mínimo.
arScientia: A Lei da Imprensa foi utilizada como instrumento para a condenação. Houve algum erro na forma como ocorreu essa utilização?
Renato Peres: É a lei de imprensa boa? Pelo que eu sei, essa lei era objeto de muitas reclamações dos jornalistas porque foi editada em 1967. Talvez não por conter penas máximas maiores porque a nossa tradição é de aplicar sempre as mínimas. Mas não é possível deixar de observar que ela contem muitos dispositivos mais modernos que os do Código Penal, como as alternativas de conciliação, direito de resposta, alternativa de multa, formas de perdão. No caso da injúria, por exemplo, há previsão de não aplicação da pena quando o ofendido provocou o fato. Existe a notificação para explicação da ofensa, que permite a retratação ou retificação por parte do suposto ofensor e acaba com a ação penal. Existe também o direito de resposta, que permite uma publicação reparatória da ofensa. No caso em tela, somente poderia ter sido utilizada a lei de imprensa porque o fato em julgamento ocorreu por meio de uma publicação. Todavia, a lei de imprensa prevê alguns procedimentos que não foram aplicados ou cuja aplicação não se deu corretamente, como a chamada exceção da verdade ou a notificação para explicação. Se a notificação tivesse sido exercitada, não teríamos a ação polêmica. Não foi exigida a notificação prévia. No meu modo de ver, a acusação genérica causa um problema para a defesa e para o julgamento. Eu já havia apontado para isto. O julgador negou reconhecer a existência do problema, mas depois acabou tendo que limitar o julgamento a apenas uma expressão, das muitas que seriam "ofensivas". E limitou a capitulação a um tipo penal, injúria, que é o mais genérico, ou aberto. "Encaixou" o emprego do termo "racista" na hipótese de injúria... (racismo é crime, logo o mais certo seria tipificar o fato como calúnia). É possível ver uma lógica ao fazer isto, mas caberia a ele explicar. De qualquer modo, não compreendo como tanta gente discursa em público no sentido de que é necessário separar criminosos violentos dos não violentos, ou no sentido de que é necessário criar procedimentos diferenciados para crimes não violentos, quando os mecanismos existentes não são aplicados. A legislação penal brasileira é bastante benevolente, a aplicação do direito penal é muito mitigada, há muitas alternativas "despenalizadoras" mesmo numa lei da época da ditadura. O caso revela, contudo, que quando há vontade, o direito pode ser muito rigoroso.
arScientia: Esse excesso de rigor ocorreu no caso do professor Emir Sader?
Renato Peres: Como se não bastassem as alternativas da lei de imprensa, nós temos hoje em vigor a lei de pequenas causas. Ninguém recebe pena de cadeia se for primário. Aliás, os processos não chegam a julgamento quando a pena de um crime é de detenção. É verdade que, no caso, a ação é de iniciativa privada, mas parece inconcebível que não se aplique a lei de pequenas causas porque os requisitos estão todos presentes.
arScientia: Na sua opinião, quais os exageros da sentença do juiz que julgou o caso?
Renato Peres: Quanto a ter havido um erro, é preciso dizer que não ouso falar mal do juiz. Primeiro, não foi ele que presidiu o processo desde o começo. Um antecessor aceitou a Queixa. Depois ele foi coerente, qualidade que deve ser respeitada. É rigoroso em todos os casos. A relação entre promotor e juiz é impessoal e deve ser objetiva, opiniões são divergentes e vamos colocar no papel, cada um na sua função. Provavelmente ele é coerente também com o que a sociedade paulista espera dele. Mas o primeiro exagero está na própria existência do processo. A Justiça tem bastante trabalho com crimes violentos para perder tempo com algo que é um crime de bagatela, se é que pode ser considerado crime. Não ter havido alternativa de prestação anterior ao processo é um exagero. Um valor alto poderia ter sido exigido, sem o custo de um processo. Depois, se limitada a condenação à injúria, a pena cabível seria a de multa. Os juízes sempre aplicam a menor pena. É raríssimo encontrar aplicação acima do mínimo. Quando há previsão de detenção ou multa, a regra é a multa, a pena menor. Além de ser afastada a multa, foi fixada a pena no máximo, um ano de detenção. Com isto, um outro "exagero" ocorreu: a decretação de perda de cargo. Ora, esse efeito secundário somente tem cabimento em penas de quatro anos ou mais. Ou se o crime tiver penas de um ano, quando o fato criminoso está relacionado ao cargo. No caso o suposto crime teria ocorrido no exercício de atividade jornalística, na imprensa, não no exercício de docência... Há tantos exageros que a pena de detenção com perda de cargo acabou sendo substituída por prestação de serviços. Ora, a perda do cargo é efeito secundário, acessório. O cumprimento da prestação de serviços elimina a pena substituída e o seu efeito secundário, entendo eu. Há tantas falhas, do meu ponto de vista, que parece impossível executar uma condenação assim. Um ponto à parte diz respeito à perda de cargo de professor. O fato não tem nada a ver com o suposto crime de imprensa. Além disto, parece um atentado contra a vida autônoma e a organização universitária. Será que a demissão de um professor universitário pode vir de fora da instituição?
arScientia: Como o senhor avalia o comportamento da imprensa no caso do Prof. Emir Sader?
Renato Peres: Interessante o comportamento da imprensa em São Paulo. Temos um Estado e uma Capital que não apenas são governados pela aliança formada pelo partido do querelante, como de fato o partido do querelante tem os mandatários que estão em exercício. Será que esse partido exerce tanta influência assim? Até mesmo O Globo da família Marinho publicou a notícia, mas não os grandes jornais de São Paulo. Também ouvi umas besteiras do tipo "o Ministério Público é um braço do PT" por causa do recurso... Isto é brincadeira? Existe algo do PT no Ministério Público ou na Justiça em São Paulo? Há uma mensagem nessa situação: é algo como "esse réu tem o que merece, os petistas são todos bandidos e não há lugar para gente assim aqui em São Paulo". Talvez a sentença seja o que as classes que mandam em São Paulo esperam. Assim, um fato desses não pode ser contestado ou sequer debatido. A imprensa devia se envergonhar do problema, mas prefere fingir que ele nem existe. Mas eu vou além disto. Tenho a impressão de que o fato é tão vergonhoso que está sendo escondido, varrido para baixo do tapete, para que ninguém veja que coisa grotesca pode ocorrer no Estado mais moderno, rico, ilustrado... Fico imaginando se o caso será relatado por organizações internacionais como atentado contra a imprensa, e se aí os jornais publicarão a notícia porque a Anistia Internacional pediu. Um jornalista condenado a um ano de prisão e perda de cargo de professor... É claro que as comparações devem ser evitadas, mas quando penso no caso, eu me lembro do caso Dreyfus.
arScientia: Por que a lembrança do Caso Dreyfus?
Renato Peres: Pelo absurdo, pelo julgamento estar imbuído de uma certa discriminação. Claro, mais de um século se passou. Aliás, está completando cem anos a reabilitação. Guardadas as devidas proporções, será que estamos produzindo um caso Dreyfus à brasileira, ou à paulista? Só falta mandar o réu para uma "Ilha Grande". Aqui no caso não se trata de discriminação racial. Mas as discriminações no Brasil geralmente são sociais. E decorrem até da aparência. O diferente aqui no caso é ser petista, e ele deve ser condenado a uma espécie de ostracismo. Não há lugar para quem discorde da classe majoritária. Não pode haver alternativa política. É bandidismo ser petista e a pena deve ser severa. Por enquanto, tenho a impressão que o caso é tão grotesco que a condenação não prevalecerá. Mas sabe-se lá... Todavia, enquanto há a condenação, a Promotoria deve lutar contra ela. A Justiça, entendida como esse universo formado por Judiciário, Ministério Público, Advocacia, aparato policial, deveria envergonhar-se de um caso assim. Se há um caso Dreyfus, que fique bem claro que o Ministério Público levantou a voz para apontar o erro, já que o Promotor não é apenas acusador. A função do Promotor de Justiça é defender a ordem democrática, a sociedade. O mínimo de igualdade de tratamento, de processo legal. Quando há crime, temos uma causa envolvendo a segurança pública. No caso em tela, é óbvio que a segurança pública não foi envolvida. Não temos um crime nem um criminoso, entendo eu. Temos uma questão em que é possível discutir idealmente a justiça. E aí deve agir o Ministério Público fiscal da lei. E deve lutar mesmo com os poucos recursos ao seu alcance.
Ivy Judensnaider - É economista e mestra em História da Ciência e Tecnologia pela PUC/SP. Trabalha como professora universitária e é escritora. Autora de Debora Fala Reservadamente com Todos, publicado pela Editora Altana, SP, é colunista da revista eletrônica NovaE, editora-chefe de arScientia e também publica regularmente em Blog da Ivy . ivy.naider@gmail.com - São Paulo
Fonte: Novae.inf
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