domingo, novembro 19, 2006

O Lula que a Folha Inventou

Bernardo Kucinski

Virou dirigente sindical para esquecer a morte da mulher. Não comandou as greves do ABC, mesmo porque elas nem existiram, e ainda apoiou a luta armada. Não gosta de ler, só lê o prefácio dos livros. Mesmo assim vai ser presidente porque FHC disse que isso ia acontecer. Esse é o resumo da biografia de Lula que a Folha teve a audácia de publicar este domingo. Deveria ser chamada de "suposta" biografia de Lula.

Expurgando as greves da história
A Folha conseguiu a façanha de explicar as origens de Lula sem falar das grandes greves de 1978, 1979 e 1980, que derrubaram a ditadura militar e projetaram Lula mundialmente. A palavra "greve" só aparece três páginas depois da narrativa principal, diluída num pequeno texto-legenda de um quadro cronológico sobre a campanha da anistia. E tudo com a data errada de 1979. A campanha pela anistia começou em 1975 com Terezinha Zerbini e já em 1978 foi fundado o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA).

A primeira greve do ABC estourou na Saab Scania, em 12 de maio de 1978. Alguns dias depois, a greve estourou na Ford e, em seguida, em 90 outras indústrias do ABC. Dois meses depois, meio milhão de trabalhadores em cerca de 400 indústrias do Estado de São Paulo haviam entrado em greve. Era o começo do fim da ditadura militar. Nada se explica, na história recente do Brasil, sem essas fulminantes greves do ABC e a "República de São Bernardo".

A "República de São Bernardo" também não existiu
Nem mesmo na legenda da foto em que Lula fala aos grevistas no Estádio de Vila Euclides existe a palavra "greve". É como se fosse uma assembléia qualquer. "Lula discursa para os metalúrgicos de Vila Euclides", diz a legenda. Uma fraude jornalística parecida com a cometida pela rede Globo, quando explicou as imagens das Diretas Já em São Paulo como se fosse a festa de aniversário da cidade.

Ignorância funcional
Na biografia de Lula publicada pela Folha, Plínio Fraga pula ostensivamente o período das greves. De 1975, ele vai direto para 1981. Com isso, fica ininteligível o motivo da demissão de Lula da Villares, tampouco a prisão do mesmo e a cassação do presidenciável do posto de líder sindical. Na biografia da Folha, a ditadura caiu sozinha, de madura, e Lula se tornou importante porque era um líder sindical que gostava de assembléias e um dia teve a brilhante idéia de fundar um partido.

Maquiando a imagem de Lula...
Será que foi por esquecimento que o jornalista pulou as greves do ABC? Ou foi de propósito? Ou será que a exclusão do operário chegou a tal ponto na cultura yuppie que ficou decidido suprimir o movimento operário da história do capitalismo? Ou será que ele quis ser original e pensou numa biografia que tratasse de aspectos inusitados e não do que já era sabido por todos?

Não é nada disso. A narrativa pula as greves como parte de um padrão que negligencia deliberadamente a formação política de Lula e sua noção de luta, de enfrentamento e de intransigência na defesa dos interesses dos trabalhadores em greve. A tese do jornalista está no olho da matéria e, para sustentá-la, ele vai suprimindo ou inventando fatos ao longo de toda a narrativa. É a tese de que "Lula se formou politicamente na cultura sindical da assembléias", e não na luta e no enfrentamento.

E falseando a história
É louvável a idéia da Folha de montar um caderno com as biografias dos candidatos. É importante mostrar aos jovens uma parte de nossa história que nem está nos livros porque é muito recente e nem na memória deles, por não ser tão recente assim. Mas por isso mesmo é muito ruim falsear a história. Plínio Fraga gasta um quarto do texto, em um enorme "nariz de cera", como se diz em jargão jornalístico, falando não de Lula e sim de como um dia FHC prognosticou que Lula seria presidente. Como se FHC explicasse a existência de Lula. O contrário é mais plausível, já que FHC foi lançado como candidato e apoiado pelos poderosos como um antídoto a Lula.

No final, depois de gastar mais algum espaço com gravatas de Lula e outras besteiras do mesmo tipo, o jornalista percebe que não conseguiu explicar o radicalismo original de Lula e acaba descambando para a mentira: "O Lula que um dia defendeu a luta armada como uma via para que os oprimidos chegassem ao poder e a expropriação do grande capital é hoje um senhor de cabelos bem cuidados e barba aparada, ternos de corte fino e sorriso contínuo

Assim ele confundiu Lula, líder das greves do ABC e fundador do PT, com Marighella, fundador da ALN. Confundiu o respeito de Lula pelos que morreram lutando pela melhoria das condições de vida do povo, entre os quais Marighella, com o apoio à luta armada, com a qual Lula não teve nada a ver.

Núcleo Piratininga

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