quarta-feira, março 21, 2007

O ESTUPRO DE IRAQUIANAS COMO TÁTICA DE GUERRA

Katarina Peixoto*

Haverá o dia em que um teórico de guerra enfrentará o estupro das mulheres das regiões militarmente ocupadas como uma das categorias que determinam a dominação? Algum dos que se debruçam a pensar e a analisar com seriedade a incursão anglo-americana no Oriente Médio tratará da violação sexual das mulheres como uma de suas marcas? Ou vão se debruçar sobre a possibilidade de descrição do que faz da violência sexual uma categoria militar?

Essas questões se põem não apenas porque o presidente dos Estados Unidos da América acaba de cumprir um roteiro por alguns países da América Latina. Não se põem, apenas, porque o estupro se tornou uma tática da ocupação do Iraque, levando-nos a creditar aos EUA, junto às atrocidades cometidas contra os iraquianos desde a invasão, em 2003, a responsabilidade pelo avanço do fundamentalismo, no mundo. Essas questões se impõem porque elas põem em jogo a autoridade Política, categoria sem a qual o poder não tem qualquer dignidade.

Essas questões também se apresentam diante da estranha declaração, feita pelo Sub-Secretário de Estado americano para o Hemisfério Ocidental, Thomas Shannon, segundo a qual a situação dos direitos humanos, no Brasil e nos demais países desta viagem, estaria na pauta da agenda de George W. Bush.

A falta de autoridade que sobressai dessa declaração de Thomas Shannon, não se diz apenas porque os EUA estão cometendo atrocidades contra os direitos, o multilateralismo e a inteligência política do mundo. Não se diz, tampouco, do fato de que o documento no qual se baseiam as acusações de violações ser um texto militante, provinciano e juridicamente tosco. Não se evidencia somente porque esse "relatório anual sobre a situação dos direitos humanos" forja a acusação, falsa e sedutora - sobretudo aos monopólios da comunicação - de que há, no Brasil, censura a "membros da imprensa".

A declaração de Shannon é estranha porque pretende estar autorizada a acusar violações que os EUA estão cometendo aos olhos do mundo. Acusações que encontram nas práticas da ocupação militar do Iraque um verdadeiro paradigma em termos de barbárie.

Não se trata de negar as violações aos direitos humanos no Brasil, cujas denúncias nunca são demais, sobretudo porque são problemas que só têm se agravado. A prática da tortura, a impunidade dos militares acusados de violação dos direitos humanos - portanto, a equiparação da conduta militar com a criminosa -, as violências cometidas contra as crianças e adolescentes e, claro, contra as mulheres, são reais e devastadoras. Trata-se, isto sim, de questionar a autoridade dos EUA em denunciar ações que comete em várias partes do mundo e que têm a marca tenebrosa do avanço e da afirmação de práticas violentas.

Nesse mês em que se comemora o Dia Internacional das Mulheres, vale lembrar algumas das vítimas e pelo menos uma das vozes que se levanta, lá onde menos se pode esperar, para reivindicar a autoridade Política de que se deve fazer a luta das mulheres. Vamos ao Iraque, a fonte de autorização de que os EUA podem, hoje, se servir para exigir qualquer política, com o mínimo de legitimidade. Não é só porque violaram o direito internacional e a ONU e não é só porque mentiram para o mundo a respeito das armas de destruição em massa que o Iraque de Saddam não tinha, mas porque não há ocupação militar que seja legítima. Por definição, ocupação militar é algo que se faz em nome de uma agenda de violência.

A agenda que abriu as portas, talvez algum teórico de guerra venha a nos descrever, para algumas das mais brutais atrocidades cometidas contra mulheres, meninas e os direitos humanos.

Neste dia 12 de março, completa-se um ano da morte da garota Abeer Qassim al-Janabi, de 14 anos, numa cidade ao sul de Bagdá. A garota foi estuprada por soldados norte-americanos, enquanto o seu pai, a sua irmã e a sua mãe eram mortos. Abeer foi estuprada escutando os tiros que mataram a sua família, num dos quartos da casa. Depois que todos os cinco soldados terminaram o estupro, um deles deu dois tiros na sua cabeça e ela com sua família foram todos incinerados. No último 22 de fevereiro, as notícias sobre o julgamento dos soldados envolvidos nessa atrocidade começaram a vir à tona e pudemos ficar sabendo que a "ação" foi decidida num jogo de cartas e que a menina foi escolhida porque só havia um homem na família, de modo que ela era um "alvo fácil".

A condenação desses soldados, de um grupo de elite do exército baseado no Estado do Kentucky, foi celebrada como a demonstração do caráter civilizatório do poder ocupante. Seria uma maneira de provar que, nos EUA, esse tipo de atrocidade recebe uma punição exemplar, bem como, também, uma maneira de reduzir a atrocidade às condutas particulares de cinco soldados, dentre eles um com "graves problemas mentais", que teria matado a família de Abeer enquanto um de seus comparsas a violentava. Seria, caso não ficássemos sabendo que o estupro se converteu em tática de guerra, ou da ocupação militar. Seria, caso não houvesse uma jovem iraquiana que tornou o seu blog uma morada da força do testemunho da história.

Poucos dias depois de publicado o veredicto condenando os soldados norte-americanos que mataram Abeer e sua família, mais um estupro foi denunciado, no Iraque. Desta vez, protagonizado pelas forças de segurança do país, que foram treinadas pelo exército norte-americano. A notícia do estupro de Sabrine Al-Janabi foi dada como sendo a "alegação" de uma sunita de que forças de segurança "xiitas" a teriam estuprado. É uma maneira de reduzir a gravidade dos conflitos na região, como se as atrocidades lá cometidas fossem de responsabilidade das "facções árabes". Esse é um velho expediente de poderes colonizadores, não deveria ser necessário lembrar: gerar ou inventar uma guerra civil, para denegar as próprias responsabilidades políticas ou para facilitar os seus negócios e a sua dominação pela força.

Sabrine Al-Janabi é o nome da "mulher sunita que vem acusando forças de segurança do país, que são xiitas, de estupro". Ela existe, tem uma família, um lar, um corpo e muita coragem. No Iraque e em países de maioria muçulmana, nos conta a blogueira Riverbend, que se esconde sob um pseudônimo, estupro é assunto privado, familiar, costumeiramente vingado, dando início a um conflito de talião, sem fim. Ninguém, menos ainda uma mulher violentada, torna a violência de que foi vítima um assunto público, impunemente. Por que essa mulher, Sabrine Al-Janabi, fez isso, indo para a tevê, a Al-Jazeera, para denunciar o que lhe ocorreu?

O primeiro-ministro do Iraque ocupado, Nouri Al Maliki, insinuou que essa denúncia não passava de uma tentativa de desestabilizar o país. Essa declaração foi suficiente para que a curra coletiva de Sabrine tenha sido tratada como mais um capítulo numa guerra civil que não parece ser de
responsabilidade nem da ocupação militar, nem do saque do petróleo do Iraque e menos ainda da brutalidade política do governo autorizado pelos anglo-americanos.

Haverá o dia em que um teórico de guerra enfrentará o estupro das mulheres das regiões militarmente ocupadas como uma das categorias que determinam a dominação? Haverá o dia em que mulheres como Sabrine terão o direito ao respeito a sua dor?

Nesse dia, a autoridade política de um país em denunciar violações de direitos humanos merecerá respeito e reconhecimento. A autoridade, essa categoria central da Política, que parece tão nítida nas palavras de Riverbend, talvez venha, então, a lançar alguma luz sobre a ameaça aos facínoras em que a sexualidade feminina consiste.

Riverbend postou isto, no seu blog, no dia seguinte ao estupro de Sabrine Al-Janabi, que tomei a liberdade de traduzir. Este texto, esta singela homenagem e esse lembrete de olhos abertos, foi escrito em memória da garota Abeer e sua família e em homenagem às duas bravas mulheres árabes, que vêm resistindo à "democracia preventiva" de George W. Bush e "Condi", Sabrine Al-Janabi e Riverbend.

O estupro de Sabrine

"Está sendo necessário ter muita energia e disposição para blogar, ultimamente. Eu acho que isso se dá, principalmente, porque só de pensar no estado em que está o Iraque eu fico devastada e deprimida. Mas eu tive de escrever, esta noite.

Enquanto eu escrevo isto, Oprhah está no Canal 4 (um dos canais da MBC canais que temos no Nilesat), mostrando aos americanos como se livrar dos débitos. Seu convidado está falando, num estúdio cheio de mulheres americanas, que parecem abundantemente consumistas e poderiam estar vestindo e usando muito menos coisas. Enquanto elas falam sobre o incremento de investimentos e fortunas, Sabrine Al-Janabi, uma jovem mulher iraquiana, está na Al Azeera contando como as forças de segurança iraquianas retiraram-na de sua casa e a estupraram. Você só pode ver os olhos dela, a sua voz está rouca e faz com que haja pausas enquanto ela fala. No fim, ela conta ao repórter que não pode mais falar sobre o assunto e cobre os seus olhos, com vergonha.

Ela talvez seja a mais brava das mulheres iraquianas que já existiu. Todo mundo sabe que as forças de segurança americanas e iraquianas estão estuprando mulheres (e currando homens), mas essa é possivelmente a primeira mulher que vem a público usando seu nome verdadeiro. Escutando a sua história eu sinto meu coração doer, fisicamente. Algumas pessoas a chamarão de mentirosa. Outros (incluindo iraquianos pró-guerra) chamarão-na de prostituta - o que causa vergonha, antes de qualquer coisa.

Eu me pergunto qual é a desculpa que eles usaram quando a seqüestraram. É como se ela fosse uma das milhares de pessoas que eles põem no rol geral de "suspeito de terrorismo". Ela talvez tenha recebido alguns dos subtítulos que você lê na CNN ou na BBC ou na Arabiya: '13 insurgentes capturados pelas forças de segurança do Iraque'. O homem que a estuprou é dessas mesmas forças de segurança de que Bush e Condi [Condoleezza Rice] estão tão orgulhosos - você sabe - de terem sido os únicos treinados por americanos. É mais um capítulo retirado do livro que documenta a ocupação Americana no Iraque: o capítulo que vai contar a história da garota Abeer, de 14 anos, que foi estuprada, morta e queimada com sua pequena irmã e seus pais.

Eles a raptaram [Sabrine] de sua casa numa área ao sul de Bagdá chamada Hai Al Amil. Não, não era uma gangue. Era a manutenção da paz iraquiana ou a sua força de segurança - os únicos treinados por americanos? Você os conhece. Ela foi brutalmente estuprada pela gangue e está agora contando a história. Metade de seu rosto está coberta por razões de segurança ou de privacidade.

Como era de se esperar, Maliki está dizendo que as acusações de estupro são mentiras. Aparentemente, sua turma simplesmente pergunta aos oficiais se eles estupraram Sabrine Al Janabi e eles dizem não. Estou tão feliz que isso tem sido esclarecido!

Eu odeio a mídia e odeio o governo iraquiano por tornarem essa atrocidade mais um confronto entre sunitas e xiitas - como se importasse se Sabrine é suni ou xia ou árabe ou curda (a tribo Al Janabi é composta tanto de sunitas como de xiitas). Maliki não apenas tornou a mulher uma mentirosa, ele está recompensando os oficiais que ela acusa. Isso é ultrajante e insano.

Nenhuma mulher iraquiana, nessas circunstâncias - nem em circunstância alguma - tornaria público, falsamente, que ela foi estuprada. Simplesmente há tantos riscos. Há o risco da vergonha pública. Há o risco de se começar o encadeamento sem fim das retaliações e vinganças entre tribos. Há a vergonha de tornar público e falar sobre um assunto tão tabu; ela e seu marido não estão apenas pondo em risco suas reputações, ao contar sua história, eles estão arriscando suas vidas.

Ninguém mentiria a respeito de algo assim simplesmente para desautorizar o sistema de segurança de Bagdá. Essa desautorização pode ser feita simplesmente com o cálculo das dúzias de mortos na semana passada. Ou escrevendo sobre as prisões em massa de inocentes, ou sobre como as pessoas estão enterrando seus pertences para que as tropas americanas não os roubem.

Durou menos de 14 horas a denúncia de Sabrine de que havia sido estuprada e a compensação de Maliki às pessoas que ela acusa. Em 14 horas, Maliki não apenas estabeleceu a inocência deles, mas os tornou seus próprios heróis. Fico me perguntando se Maliki confiaria a segurança de sua esposa e filha a esses homens.

Isso serve para desencorajar prisioneiros, especialmente mulheres, a virem a público fazer denúncias contra as forças de segurança iraquianas e americanas. Maliki é o homem mais estúpido do mundo (bem, depois de Bush, claro...), se acredita que a sua arrogância na forma dura de tratar a situação vai funcionar para afastar isso das mentes dos iraquianos. Fazendo o que ele está fazendo, está deixando mais claro do que nunca que, por baixo dessa regra, sob o seu governo, a justiça vigilante é a única maneira de prosseguir. Por que deixar isso a cargo das forças de segurança e da polícia? Simplesmente que se pague uma milícia ou uma gangue, para fazer a vingança. Se isso não der alguma justiça para ela, sua tribo será forçada a ...E a Janabat (e todos os Al Janabis) são forçados a retrucar.

Maliki poderia ao menos fingir que o estupro de uma jovem mulher iraquiana ainda é um ultraje, nos dias de hoje, no Iraque...".

Leia mais em www.riverbendblog.blogspot.com.

* é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: katarinapeixoto@hotmail.com

Fonte: www.agenciacartamaior.com.br

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