quarta-feira, março 21, 2007

Entrevista - Oscar Niemeyer

por: Ricardo Miranda

O arquiteto critica a humanidade, fala sobre Chávez, Lula e Bush e diz que as homenagens ao aniversário de 100 anos são um “equívoco”

Rio de Janeiro – Um mito vivo — embora ele ache o título uma grande besteira — que se mostra humano, frágil, perplexo com o mundo em que vivemos e conformado com a finitude, inclusive de sua obra. Esse é um paradoxo só aparente. Na manhã da última terça-feira, o arquiteto Oscar Niemeyer, 99 anos, abriu sua casa-escritório na cobertura do velho Edifício Ypiranga, na Avenida Atlântica, em Copacabana, para fazer um inventário da estupidez humana. Do alto de seu quase século, que completa em dezembro, narrou um pouco da vida de um comunista convicto em um mundo egoísta e predador. “O ser humano não tem sentido”, vocifera. Pode parecer amargo, mas na voz rouca de Niemeyer soa dramaticamente lógico. Para o grande arquiteto, nem sua obra tem de fato importância. Uma de suas angústias é a violência brasileira, fruto, segundo ele, das enormes desigualdades sociais do país. Por isso, quando fala em futuro, não pensa em novas obras. “Gostaria de olhar para a cidade e não ver favelas, não ver pobre na rua, olhar o povo satisfeito correndo na praia”, revela o crítico do modelo de self made man, importado da cultura americana. “O sujeito quer ser o vencedor. Isso é uma merda!”, desanca.

Niemeyer conversou com o Correio no lugar onde passa mais tempo, com incursões até o cavalete no corredor onde, sempre de pé, rabisca seus traços tão simples quanto geniais. Um dos projetos mais recentes é o monumento a Simon Bolívar com 100m de altura, que foi entregue ao presidente venezuelano Hugo Chávez. “Ele é um sujeito simpático, competente, patriota...”, aponta Niemeyer, que vê novos ventos soprando sobre a América Latina em oposição ao poder do presidente americano George W. Bush, que ele chama de “terrorista número um” do mundo. “Os países estão se transformando em repúblicas populares, de mãos dadas contra os americanos. Essa onda do Bush acabou”, decreta. Niemeyer acha que Lula poderia, inclusive, aproveitar o novo encontro com o presidente americano, no final do mês, para marcar posição. “Ele devia dizer que é brasileiro e que vai continuar defendendo o Brasil da pressão norte-americana”, sugere.

O apartamento na Atlântica é grande, mas não tem nada que possa ser caracterizado como luxuoso. É branco do piso às paredes, com espaços vazios, preenchidos por mesas, cadeiras e estantes empilhadas de projetos, maquetes e muitos livros, de autores como Jorge Amado, Dias Gomes, Hélio Silva e Fernando Morais. Na entrada, uma foto antiga da igrejinha da Pampulha, projeto seu em Belo Horizonte, e, numa parede próxima, um retrato de Luiz Carlos Prestes, ainda jovem. Niemeyer, que não quer ouvir falar em homenagem no ano de seu centenário, diz que sua vida passou voando. “É um minuto...A gente nasce e morre. Cada um dá sua historinha e vai embora. Eu deixo a minha historinha também”, diz. E que história!

“Deixo a minha historinha”

O senhor diz que a arquitetura não é importante, o importante é o homem. Que é preciso um homem mais humilde e solidário. O senhor acha que a arquitetura de hoje é o reflexo do homem moderno, egoísta e vaidoso?
Existem projetos que tenho prazer em elaborar. Outros, eu recuso. O lado humano da arquitetura sofre a influência do mundo capitalista e do poder imobiliário, que a corrompem e desmerecem. Tem certos princípios de que a gente não abre mão. Eu tive sorte, tive oportunidade de começar fazendo a Pampulha, depois veio Brasília...E aproveitei. Às vezes, temos uma chance boa e não sabemos dela tirar partido, aí não adianta nada.

Incomoda ao senhor a reverência exagerada, a veneração, ou, no bom português, o puxa-saquismo?
Me ocupa tempo demais, o que infelizmente não posso evitar. Mas compreendo, é natural, se eu ficar me escondendo fica meio esquisito, meio misterioso, tenho que me abrir.

O senhor já escreveu que tudo na vida é precário e ilusório e que, diante do tempo, tudo vai ser esquecido. Até as suas obras?
É tudo tão precário, como as nossas pobres vidas. É uma vaidade tola, isso não existe. O sujeito tem que ser simples, trabalhar, ser cordial, ter prazer em ajudar os outros. Um dos problemas hoje do arquiteto, aliás, de qualquer profissional, é que ele não quer ler. Não se interessa pela leitura. O mundo dele é só a vida dele. O horizonte dele é muito pequeno. Ele entra para a vida sem saber como se portar neste mundo tão difícil de lidar, cheio de preconceitos e privilégios. Uma vez eu estava aqui no escritório com alguns estudantes, uma delas perguntou para outra: “Você já leu Eça de Queiroz?’. A outra respondeu: “É filho da Raquel de Queiroz?”. É uma merda, né. Estamos criando agora um Instituto de Arquitetura e Humanidades em Niterói e a finalidade é melhorar o nível das pessoas. Além de arquitetura, o curso abrange conferências sobre filosofia, história... Depois de dois meses, o aluno sairá diferente.

O senhor acha importante que o arquiteto conheça os problemas sociais da cidade onde atua?
Arquitetos e todo mundo. Para que se saiba o que está passando, que o planeta não é nosso, que está envelhecendo como a gente. Aqui no escritório tenho palestras sobre filosofia toda terça-feira, há cinco anos, e nenhum de nós quer ser intelectual, a gente quer ter uma idéia mais clara dos problemas da vida. Falamos do planeta Terra, dos problemas de água, de frio, de calor, desse planeta no fim da galáxia, longe de tudo... E saber que o mundo é mal dividido, que todos devem ter as mesmas oportunidades. Aqui, como nos Estados Unidos, o sujeito quer ser o vencedor, quer dinheiro. É pensar pequeno demais. Temos que crescer, viver com simplicidade, com os filhos, ter amizade pelas pessoas. O importante não é o sujeito ver as pessoas procurando adivinhar os defeitos, mas admitindo que todo mundo tem um lado bom. O Lênin dizia que 10% de qualidades já eram o suficiente.

Citando Lênin, ele certa vez disse que “nossa estética é nossa ética”. O senhor acha que as desigualdades sociais provocam a violência?
É lógico. A pobreza, a revolta, o sujeito que nasce na favela e enfrenta preconceito pelas ruas, a polícia atrás. Ele age como um revoltado. A grã-finagem já olha a garotada nas favelas como futuros inimigos. E a questão de cor vai tomando um sentido assim de racismo. É horrível!

O Brasil é um país racista?
Sempre foi. O pai do Chico Buarque (Sérgio Buarque de Holanda) escreveu um livro muito bom (Raízes do Brasi) em que contava que os portugueses davam mais atenção aos índios. E que os pretos foram sempre olhados como escravos. De tal forma que, quando um índio casava com uma negra, perdia o emprego. E isso existe. A gente tem que saber que o ser humano não representa nada, é desprezível, não tem tarefa nenhuma aqui, não tem perspectiva, mas tem que viver. E a maneira de viver é de mãos dadas, num clima de boa vontade, ter prazer em ser útil.

(O arquiteto João Batista Vilanova) Artigas dizia que a felicidade de um povo se mede pela beleza de suas cidades. Como o senhor vê a arquitetura no Brasil hoje?
Acho que a felicidade do povo é ter uma casa para morar, e ter o suficiente para comer e levar a vida decentemente. Não tem nada a ver com arquitetura. A arquitetura não muda a vida, mas a vida pode mudar a arquitetura.

Com o desenvolvimento das cidades, a arquitetura perdeu poder para as construtoras, para a especulação imobiliária?
Ah, é lógico. Se você for examinar Brasília, o Plano (Piloto) tinha muitos espaços vazios. Arquitetura e urbanismo são o jogo de volumes e espaços livres. E muitos dos vazios foram ocupados, não levaram em conta que o vazio é importante. Quando se faz um prédio, o terreno que o cerca faz parte da arquitetura. As cidades se degradam porque crescem demais. Uma cidade feita para 500 mil (habitantes), que tem um milhão, dois milhões, não pode funcionar bem. O urbanismo moderno já adota algumas diretrizes: a cidade não deve crescer descontroladamente, deve se multiplicar. Quando chega numa densidade tal, faz-se outra afastada. E em volta das cidades, ficam os terrenos livres, arborizados. Isso é urbanismo. Nós não seguimos isso, naturalmente. O Rio daqui a pouco estará ligado a São Paulo.

Em Brasília, as pessoas com mais poder aquisitivo, ficam no Plano Piloto. As demais, mesmo trabalhando em Brasília, acabam morando mais longe...
É claro que as cidades-satélites não deveriam existir. E, como a pobreza é maior, sua densidade demográfica é hoje superior à do Plano Piloto. Uma cidade dividida entre pobres e ricos.

Brasília ainda é uma obra inacabada?
Toda cidade exige de repente que se examine se ela está em ordem. Depois da construção da cidade, as qualidades e os defeitos se tornam mais evidentes. Mas o desenho do Lucio (Costa, urbanista) para Brasília tem muita qualidade.

Qual foi sua última viagem a Brasília?
Não vou há muito tempo. Quando cheguei lá a primeira vez, parecia que estava no fim do mundo. Não tinha automóvel, não tinha telefone, não tinha nada...

Hoje quando o senhor vai a Brasília, como se sente? Em casa?
Eu gosto é do Rio. Eu gosto de olhar o mar. De poder ir à praia. Não vou mais, mas gostava de ir...

O carioca tem muitas restrições em relação a Brasília...
Brasília foi um momento de otimismo, de coragem...uma aventura. O objetivo era bom, levar o progresso para
o interior. Foi um momento de otimismo do povo brasileiro.

O senhor diria que as curvas da mulher são sua principal fonte de inspiração?
Quando me perguntam sobre formas, na arquitetura, eu lembro de André Malraux (primeiro ministro de Cultura na França, nomeado por De Gaulle), que disse que tinha internamente um museu dentro dele, de tudo o que gostou e amou na vida. Eu também sou assim quando faço um projeto, tenho reminiscências do passado. Às vezes faço um projeto sem pegar no lápis e, quando sento na prancheta, já tenho uma idéia. Outras vezes não, é desenhando que a solução aparece. Minha preocupação na arquitetura é reduzir os apoios, as colunas, e quando isso ocorre a arquitetura parece mais audaciosa. Eu procuro que ela crie espantos, crie surpresas, que
a pessoa, ao ver um prédio meu, tenha a sensação de que não viu nada parecido.

Sua convicção comunista nunca foi abalada, levando em conta os rumos do mundo contemporâneo?
Eu era de família católica, com retrato do Papa na parede. Mas a vida é injusta demais. Eu sou um comunista que acha que é preciso mudar o mundo, que nada vai se resolver com paliativos, o capitalismo é ruim, divide os homens, cria poder, cria a violência. Para melhorar, tem que mudar. E vai mudar, porque a miséria é a maioria. É o proletariado no poder.

O comunismo não é uma utopia?
Utopia é querer consertar o capitalismo, achar que ele poder ser melhorado. Está tudo errado, é uma doutrina de miséria, de egoísmo. O Brasil é feito os Estados Unidos: o sujeito começa a vida e quer ter poder, ser rico, ganhar dinheiro, dominar. Uma merda! As pessoas não entendem que não valem nada, não tem importância, ninguém tem importância.

Queria falar sobre o presidente cubano Fidel Castro...
Ele aproveitou a oportunidade e tirou Cuba do poder dos americanos, que faziam do país o seu quintal.

Cuba deve continuar sob o domínio da família Castro?
Se você diz família Castro se referindo ao povo cubano, está bom. O povo cubano é que levou Fidel Castro ao poder e está lutando para que ele resista. Como o (Hugo) Chávez (presidente da Venezuela), que quer mudar
o destino do povo venezuelano. Quando fica difícil a revolução, aparece não raro um militar, porque eles foram criados com a pátria dentro do peito – com exceções, é lógico. Chávez é um sujeito simpático, competente, patriota...

Ele pode ser o sucessor de Fidel como líder de esquerda na América Latina?
Não sei. Se você olhar para trás, a coisa está mudando, os países estão se transformando em repúblicas populares, a maioria dos países da América Latina está de mãos dadas contra os americanos. Essa onda do Bush, o terrorista número um, acabou, ele está sem saber o que vai fazer. Mas como ele tem a força, ele pode fazer muita coisa. O que muda tudo é o inesperado, ele pode jogar com isso ainda.

O que o senhor acha da posição do presidente Lula?
Ele é esperto e não está combatendo o Chávez. Para o meu gosto, eu queria que ele fosse mais freqüente no contato com o pessoal que está defendendo a América Latina. Nosso país está ameaçado. Os americanos foram inimigos até hoje dos mais pobres, porque agora eles vão mudar?

O presidente americano esteve agora em São Paulo...
Eu protestei (em cerimônia na Academia Brasileira de Letras).

...e volta a se encontrar com o Lula no final do mês. O que o senhor gostaria que ele dissesse a Bush?
Dizer que ele é brasileiro e que vai continuar defendendo o Brasil da pressão norte-americana, que ele está com toda a América Latina, que é uma briga comum e que não abre mão disso.

O senhor gosta do governo do Lula?
É um operário no poder. Imagine se não fosse o Lula, se tivesse vindo um outro... A vitória do Lula foi muito importante para o Brasil. E para a América Latina também.

O senhor acha que o Lula é de esquerda?
Não é comunista, é operário. Mas a formação dele não é de quem nasceu rico e quer ficar mais rico.

O senhor viverá esse ano um certo dilema. Assumidamente não gosta de homenagens, comendas, mas muita gente no país quer lembrar o seu centenário. Como vai conviver com isso?
Vou procurar ficar quieto no meu canto. Não posso impedir que venham falar comigo, seria pior. Mas nada disso tem importância, eu sou um sujeito como outro qualquer. É um equívoco, não há razão para homenagens...

Não é todo mundo que faz 100 anos. Falta de assunto... O senhor disse recentemente: “A vida é muito curta. Não dá tempo de fazer tudo”. É tão rápido assim?
É um minuto... A história dos homens é a mesma, as mesmas esperanças, os mesmos devaneios, as mesmas desilusões, as mesmas angústias, sem saber nem por que, nem para que passam por aqui e desaparecem. E ver a morte dos parentes e amigos, uma coisa permanente e inevitável, é muito duro. Nós éramos seis irmãos, agora estou sozinho. O desaparecimento de cada um deles foi uma tristeza... O ser humano não tem sentido. Por isso eu digo: o sujeito tem que se informar. Não é para ficar mais iluminado não, mas poder sentir os mistérios do universo e de sua própria vida, discutir de onde tudo isso apareceu, procurar discutir as hipóteses.

O senhor tem algum grande projeto que queira realizar?
Eu gostaria de olhar para a cidade e não ver favelas, não ver pobre na rua, olhar o povo satisfeito correndo na praia, ninguém querendo ser importante. Essa idéia de importância é tão ridícula, esse negócio de achar que venceu na vida... Isso é uma merda!

Se daqui a 100 anos, alguém falar em Oscar Niemeyer, como o senhor gostaria de ser lembrado?
Uma pessoa normal, como qualquer outra. Cada um na vida vem, conta sua historinha e vai embora. Eu deixo
a minha historinha também.

Publicada em: Correio Braziliense - 18 março 2007
URL: Ministério das Relações Exteriores

Um comentário:

alex disse...

fantastico, postura perfeita.