sexta-feira, dezembro 08, 2006

As grandes alamedas

O texto reproduzido abaixo é uma belíssima análise sobre este momento político na América Latina, bem como o processo que o originou, escrita por José Luís Fiori, cientista político e professor da UFRJ, publicada hoje pela Carta Maior. E me fez lembrar das palavras de Tariq Ali, em uma das entrevistas que concedeu quando esteve no Brasil em agosto deste ano para a Festa Literária de Parati - acho que foi na do Roda Viva - onde, ao comentar o fato da democracia estar sendo minada pela aliança entre poder e dinheiro, foi questionado se ele via no mundo alguma esperança, no sentido de efetivamente construir-se uma alternativa ao neoliberalismo e ao chamado Consenso de Washington, e lascou sem qualquer hesitação: "Sim, na América Latina". Pois entonces, tá tudo aí:


“Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir uma sociedad mejor”
Salvador Allende, Último Discurso, 11 de setembro de 1973


O filósofo francês Michel Foucault começa seu livro sobre “As Palavras e as Coisas” citando uma “classificação de animais” de uma enciclopédia chinesa descoberta por Borges, e que parece, à primeira vista, muito divertida. Para os chineses, os animais se dividiriam em “a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, c) sereias, d) fabulosos e) cães em liberdade, f) que se agitam como loucos, g) inumeráveis, h) que acabam de quebrar a bilha, i) que de longe parecem moscas, j) et cetera, l) incluídos na presente classificação, m) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo”. Na verdade, um exercício lógico de construção de um conceito e de uma identidade, num determinado momento milenar do conhecimento biológico chinês.

O estranho, quase divertido, é perceber a semelhança que existe entre esta lista milenar de animais e as classificações recentes da esquerda latino-americana feitas pelos conservadores. Durante a Guerra Fria, a esquerda foi considerada uma força política coesa, e uma ameaça homogênea. Mas agora, segundo os conservadores, as suas divisões e classificações internas são tantas e tão confusas que lembram a classificação dos animais chineses.

No início, só se distinguiam os “normais” e “equilibrados” dos nacionalistas e populistas, mas agora o quadro se complicou, e já se fala normalmente de esquerdistas “a) moderados, b) radicais, c) do bem, d) do mal, e) demagógicos, f) refundacionistas, g) etno-sociais, h) modernos, i) espalhafatosos, g) anacrônicos, h) autoritários, i) pós-modernos, f) nacional-populares, g) pragmáticos, h) nacional-desenvolvimentistas, i) raivosos, j) narcísicos, l) estriônicos, m) pré-históricos, e até m) nazi-fascistas”. No caso da Enciclopédia Chinesa, a confusão pode ser atribuída à Biologia da época. Mas no caso da esquerda latino-americana, e da sua vitória eleitoral, neste ano de 2006, não é provável que a culpa seja apenas da Ciência Política.

É perfeitamente compreensível que alguns não gostem do que está acontecendo. Mas qualquer observador mais atento e objetivo percebe que está em curso uma mudança importante na América Latina, uma mudança com relação à história da própria esquerda e de todos os sistemas políticos do Continente. Basta lembrar que neste início de século XXI, todas as vitórias da esquerda foram democráticas e massivas, por maiorias contundentes e com o apoio ativo de populações que estiveram até hoje isoladas e “recluídas”, nas montanhas indígenas, no submundo urbano, e nos grotões do atraso e da dominação coronelista.

Tudo isto, depois de 20 anos de ditaduras militares de direita, em quase todo Continente, e mais 10 anos de governos neoliberais. Frente a isto, o que se destaca como denominador comum desta nova onda de esquerda, na América Latina, é sem dúvida nenhuma a vontade massiva de mudar, a vontade de não voltar mais para trás, mesmo quando ainda não estejam claras as idéias e os caminhos imediatos do futuro. A esquerda latino-americana governou muito pouco, durante o século XX, e na hora da sua vitória, no início do século XXI, os socialistas e a social-democracia européia estão vivendo uma profunda crise de identidade.

Por isso, o que surpreende neste momento não é a imprecisão das idéias e dos projetos imediatos dos governos eleitos, mas a sua unidade em torno de um grande objetivo central: mudar definitivamente o rumo elitista, racista e subalterno da história latino-americana. Esta novidade histórica exige um renovado esforço teórico, porque já não cabe nos conceitos clássicos da sociologia latino-americana, que se transformaram em jargões, como no caso, por exemplo, do “populismo”, que quer dizer tudo e não significa mais nada.

Em 1944, o historiador e economista austríaco Karl Polanyi publicou nos Estados Unidos uma obra clássica sobre a formação e expansão da “civilização liberal” no século XIX, e sobre as suas crises e guerras no século XX (1) . Segundo Polanyi, as economias e sociedades liberais são movidas por duas forças simultâneas e contraditórias, materiais e sociais. A primeira seria de natureza “liberal-internacionalizante”, que empurraria as economias nacionais na direção da globalização e da universalização dos mercados “auto-regulados”. E a segunda atuaria numa direção oposta, de “auto-proteção social e nacional”, funcionando como uma reação defensiva das sociedades ao efeito destrutivo dos mercados auto-regulados, que ele chamou de “moinhos satânicos”.

No caso dos países europeus, sobretudo no século XX, estes dois movimentos de auto-proteção – nacional e social – convergiram sob a pressão externa das duas Grandes Guerras Mundiais, da crise econômica da década de 1930 e, depois, da própria Guerra Fria. Polanyi considera que foi esta convergência que viabilizou, depois de 1945, o sucesso das políticas de crescimento econômico, pleno emprego e bem-estar social, consideradas heréticas durante a “era de ouro” da “civilização liberal”, entre 1840 e 1914. Mas fora da Europa e dos Estados Unidos, em particular na América Latina, este “duplo movimento” nunca se deu de forma convergente, pelo menos até o final do século XX.

Karl Polanyi não previu a possibilidade de uma “restauração liberal-conservadora” dos mercados auto-regulados, como a que ocorreu depois de 1980. Entretanto, no início do século XXI, multiplicam-se por todo lado os sinais de uma nova reversão ou “grande transformação” – nacional e social – provocada pelas desregulações massivas dos mercados, nas últimas décadas do século XX, e pelo seu impacto destrutivo sobre o mundo do trabalho e sobre a distribuição da riqueza entre as classes e as nações.

A grande novidade, entretanto, é que desta vez, a reação social e nacional está começando pela América Latina, quem sabe graças à “globalização”. E ainda mais, desta vez, ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, a convergência das duas forças de que fala Polanyi não está sendo provocado por uma guerra, e o movimento de “auto-proteção” está vindo do social para o nacional, de “baixo” para “cima”. Na forma de um gigantesco movimento democrático, a favor de mais justiça na distribuição nacional e internacional dos direitos, do poder e da riqueza.


* Artigo em homenagem a Eduardo Kugelmas, grande amigo e companheiro de Santiago do Chile, professor da Universidade de São Paulo, falecido no dia 14 de novembro de 2006.

(1) Polanyi, K. (1944/1972), A Grande Transformação, Editora Campus, Rio de Janeiro


*José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Agência Carta Maior

2 comentários:

Claudinha disse...

Passei por aqui para te dar um alô e fui "presenteada" por este belíssimo texto do Fiori. Pena que ele não se estendeu mais na argumentação. Abraço!

joice disse...

Concordo, Cláudia. Quando concluí a leitura do texto, pensei - tá e o resto? um abraço e obrigada pela visita.