domingo, dezembro 03, 2006

Salários de toga

IstoÉ-03/12/2006

Depois de enfrentarem a presidente do STF
e não reduzirem seus salários, qual será o
próximo passo? O país começa a assistir
a uma guerra fratricida no Judiciário

Por Rudolfo Lago e Hugo Marques

Quando se trata do próprio bolso até mesmo os discretos togados que habitam os tribunais do País não vacilam em tornar públicas suas divergências. Revelam, assim, que o Judiciário, ao contrário do que vem ocorrendo a duras penas no Executivo e no Legislativo, resiste fortemente em cortar na própria carne. Na quarta-feira 29, os presidentes dos tribunais de Justiça de cada Estado receberam da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ellen Gracie, uma lista incômoda. Era a relação dos funcionários do Judiciário com salários acima do teto constitucional de R$ 22,1 mil. Além da lista, os desembargadores receberam da magistrada uma dura recomendação: os supersalários tinham de ser cortados já este mês. O que Ellen não esperava, porém, foi a reação dos desembargadores. Os responsáveis por zelar pelo respeito às leis e à Constituição disseram à presidente do STF que não a obedeceriam, pelo menos de imediato. Prometeram rever a relação, refazer os cálculos e analisar caso a caso as situações, certos de que poderiam justificar determinadas situações. “Isso é uma afronta à ordem estabelecida e à Constituição”, reagiu o secretário da reforma do Judiciário, Pierpaolo Bottini. De acordo com ele, a única coisa que caberia aos presidentes dos tribunais era cumprir o mais rápido possível a determinação que receberam de Ellen Gracie. O teto salarial é previsto pela Constituição, e não há nada que justifique que alguém receba além dele.

Os servidores do Judiciário já são privilegiados se comparados aos funcionários dos outros dois Poderes. Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem um salário mensal de R$ 8,8 mil e os deputados e senadores recebem R$ 12,8 mil, um ministro do Supremo Tribunal Federal recebe R$ 24,5 mil, e o teto nos Tribunais de Justiça chega a R$ 22,1 mil. É verdade que tanto Lula quanto os parlamentares recebem benefícios indiretos. Mas isso também acontece com juízes e desembargadores. Além dos seus salários, eles têm remuneração extra por tempo de serviço e benefícios de planos fechados de previdência. Mais indenizações de vários tipos: auxílio-transporte, ajuda de custo em caso de mudança, auxílio-moradia, diárias de viagens, auxílio-funeral, entre outras. Recebem ainda auxílio para pagar colégio para seus filhos, planos médicos e bolsas de estudo para aprimoramento profissional. Há ainda gratificações, por exemplo, por exercício de função eleitoral ou de magistério. O que descobriu o CNJ em seu levantamento é que, a despeito de tudo isso, existem 2.978 servidores do Judiciário que recebem salários acima do teto legal.

Desses quase três mil marajás, 1.208 estão em São Paulo, inclusive o maior deles, que recebe mensalmente R$ 34,8 mil. Os supersalários do Judiciário estão concentrados em 19 tribunais estaduais de Justiça e no Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

A descoberta dos supersalários abortou uma movimentação no Judiciário e no Ministério Público que tinha por objetivo melhorar ainda mais seus vencimentos. Antes de conhecer a lista, foi cancelada uma reunião que Ellen Gracie teria com os presidentes da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), na qual defenderia a aprovação de projetos que concederiam novos reajustes para os magistrados. A pauta que a presidente do Supremo pretendia defender pessoalmente aumentaria em R$ 134,5 milhões os gastos da União com o Poder Judiciário. Um dos projetos pretendia aumentar em 5% os vencimentos dos ministros do STF. O grande problema é que essa não é uma medida que ficaria circunscrita somente aos 11 integrantes do Supremo. O aumento teria efeito cascata sobre os salários de mais 5,5 mil juízes por todo o País. Além desse reajuste, outro projeto previa o pagamento de um jetom de 12% do salário para cada integrante do CNJ por comparecimento às sessões de discussão. Pretendia ainda que esse pagamento fosse retroativo à criação do conselho, em junho de 2005. A reunião em que esses projetos seriam discutidos acabou não acontecendo e Aldo Rebelo tirou-os da pauta de votação da Câmara.

Enquanto o Congresso adiava, assim, o aumento para os juízes, o presidente Lula fez o mesmo para parte dos procuradores do Ministério Público. Lula vetou o projeto que concedia um aumento de 12% para os 14 integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público. O que os procuradores pretendiam era algo semelhante à proposta que Ellen Gracie defenderia para o CNJ: o pagamento de um jetom por comparecimento às sessões. Os procuradores, que têm um teto salarial de R$ 23,3 mil, passariam assim a ganhar R$ 28,9 mil. Ultrapassariam, então, os vencimentos dos ministros do STF que, diante da situação, provavelmente buscariam equiparação. Como, de fato, fizeram ao propor o mesmo mecanismo de jetom para os 15 integrantes do seu conselho.

Estima-se que a morosidade da Justiça brasileira gera um prejuízo da ordem de R$ 10 bilhões. Mais da metade das obras de infra-estrutura planejadas, por exemplo, está parada à espera de decisões judiciais sobre demandas que vão de problemas ambientais a questões contratuais. E, a despeito disso, a Justiça brasileira trabalha apenas 180 dias por ano. Com dois recessos, tem 70 dias de férias. E mais 30 outros feriados ao longo do ano. Para Bottini, já é hora de a Justiça refletir sobre isso. “Falta ao Judiciário criar uma cultura de estatística, que mostre uma dimensão do quadro salarial e do número de ações pendentes de julgamento”, defende o secretário da reforma do Judiciário.

Nenhum comentário: